2022 em: filmes
Nem acredito que 2022 acabou. Meu pior ano, de longe. Só sei que sobrevivi — barely.
Vamos ao que interessa: filminhos, muitos filminhos.
Entram títulos recentes (2020, 2021 e 2022) com nota a partir de 7/10 (ou 3.5/5).
Tem coisa passando nos cinemas, disponível em streaming ou VOD. E praticamente tudo está por aí. Basta caçar.
Eis:
4️9️
Red: Crescer É uma Fera (Turning Red, 2022), de Domee Shi
4️8️
The Rescue (Jin Ji Jiu Yuan, 2020), de Dante Lam
4️7️
Sycorax (2021), de Lois Patiño e Matías Piñeiro
4️6️
Belle (Ryû to sobakasu no hime, 2021), de Mamoru Hosoda
4️5️
Assalto ao Banco da Espanha (The Vault, 2021), de Jaume Balagueró
4️4️
Fogo-Fátuo (2022), de João Pedro Rodrigues
4️3️
The Batman (2022), de Matt Reeves
4️2️
A Máquina Infernal (2021), de Francis Vogner dos Reis
4️1️
Duna (Dune, 2021), de Denis Villeneuve
4️0️
Azor (2021), de Andreas Fontana
3️9️
Não Haverá Mais Noite (Il n’y Aura Plus de Nuit, 2020), de Éléonore Weber
3️8️
The Timekeepers of Eternity (2021), de Aristotelis Maragkos
3️7️
Stars at Noon (2022), de Claire Denis
3️6️
Dashcam (2021), de Rob Savage
3️5️
Nobody’s Hero (Viens je t’emmène, 2022), de Alain Guiraudie
3️4️
North by Current (2021), de Angelo Madsen Minax
3️3️
Frente a Frente (Nou fo/Raging Fire, 2021), de Benny Chan
3️2️
Noites de Paris (Les Passagers de la Nuit, 2022), de Mikhaël Hers
3️1️
Armageddon Time (2022), de James Gray
3️0️
Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial (Apollo 10 1/2: A Space Age Adventure, 2022), de Richard Linklater
2️9️
Tre Piani (2021), de Nanni Moretti
2️8️
A Invenção do Outro (2022), de Bruno Jorge
2️7️
Dead for a Dollar (2022), de Walter Hill
2️6️
Marte Um (2022), de Gabriel Martins
2️5️
Dark Glasses (Occhiali Neri, 2022), de Dario Argento
2️4️
A Última Floresta (2021), de Luiz Bolognesi
2️3️
Ambulância – Um Dia de Crime (Ambulance, 2022), de Michael Bay
2️2️
Pinóquio por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro’s Pinocchio), de Guillermo del Toro e Mark Gustafson
2️1️
Shin Ultraman (2022), de Shinji Higuchi
2️0️
Il Buco (2021), de Michelangelo Frammartino
1️9️
Confess, Fletch (2022), de Greg Mottola
1️8️
Mato Seco em Chamas (2022), de Adirley Queirós e Joana Pimenta
1️7️
Os Primeiros Soldados (2021), de Rodrigo de Oliveira
1️6️
Crimes do Futuro (Crimes of the Future, 2022), de David Cronenberg
1️5️
Cabeça de Nêgo (2020), de Déo Cardoso
1️4️
Hold Me Back (Watashi wo kuitomete, 2020), de Akiko Ohku
1️3️
A Crônica Francesa (The French Dispatch, 2021), de Wes Anderson
1️2️
Licorice Pizza (2021), de Paul Thomas Anderson
1️1️
Mães Paralelas (Madres Paralelas, 2021), de Pedro Almodóvar
1️0️
Memória (Memoria, 2021), de Apichatpong Weerasethakul
9️
RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (RRR), de S.S. Rajamouli
8️
Limbo (2021), de Soi Cheang
7️
O Filme da Escritora (So-seol-ga-ui yeong-hwa/The Novelist’s Film, 2022), de Hong Sang-soo
6️
Red Rocket (2021), de Sean Baker
5️
Com Amor e Fúria (Avec Amour et Acharnement, 2022), de Claire Denis
4️
Não! Não Olhe! (Nope, 2022), de Jordan Peele
3️
Avatar: O Caminho da Água (Avatar: The Way of Water, 2022), de James Cameron
2️
France – Sob of Holofotes (France, 2021), de Bruno Dumont
1️
Os Fabelmans (The Fabelmans, 2022), de Steven Spielberg
Outubro: The Novelist’s Film, Apollo 10 1/2, Ambulance
Sobrevivemos a outubro? Parece que sim. Então, vamos falar de filminhos.
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The Novelist’s Film (So-seol-ga-ui yeong-hwa, 2022), de Hong Sang-soo
▶️ Por aí
Se você calhar de espiar a enorme sinopse-sumário do IMDb, já vai saber tudinho, cenas inteiras descritas em algumas linhas. E daí? Como não dou a menor pelota pra roteiro — eu vejo filme e nem lembro de metade da história segundos depois, sou desses; só quero estilo e vibes –, vamos ao que importa.
Porque o filme é só gostosa digressão em torno de uma escritora prestigiada e seus vários encontros, planejados e espontâneos.
Os filmes de HSS sempre escondem uma estranheza meio inclassificável na encenação. A um só tempo cada olhar, movimento, toque, risadinha, constrangimento soam tão docemente cristalinos quanto angustiantemente misteriosos. Mestre é mestre, né. E ele simplesmente domina a arte de elevar o mundano, o banal, o casual ao ponto de nos enlevar.
Meu novo sonho é dormir numa mesa de um lugar qualquer após entornar um bocado de makgeolli.
Informação importante: não, não tem soju aqui, mas nem por isso pode-se dizer que este é um filme menor de HSS.
Por mais escritores hong-sang-soo-nescos neste mundo.
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Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial (Apollo 10 1/2: A Space Age Adventure, 2022), de Richard Linklater
▶️ Na Netflix
Teria de rever Waking Life (2001) e O Homem Duplo (2006) pra fazer uma comparação mais adequada, mas suspeito que Apollo seja o grande feito de Linklater na animação.
É simplesmente delicioso demais como ele secciona a história em duas partes — uma pra mostrar a visão clássica e deslumbrada de todo mundo sobre a ida do homem à Lua, outra só com o ponto de vista sonhador e o senso inesgotável de aventura do garotinho Stan, protagonista da parada.
E o POV que interessa mesmo é o miolo do filme, que dá quase metade de tudo. Uma miscelânea de filmetes caseiros de Super-8 da vida nos subúrbios perto de Houston, as referências de programas de televisão e cinema que habitam a cabecinha do personagem — e é óbvio que Linklater precisa citar todas elas, o que torna cada letreiro ou título indispensável na tela –, os passeios ao drive-in, ao clube, à praia, a sovinice do pai diante de qualquer gasto extra, as brincadeiras na rua ao livre com os cinco irmãos e outros filhos de famílias populosas da vizinhança, as merendas preparadas pro início de cada semana no fim de mais um angustiante domingo.
Um prazer hang out de boas com Linklater em qualquer história que seja.
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Ambulância – Um Dia de Crime (Ambulance, 2022), de Michael Bay
▶️ Por aí
“I’ll bet you a million dollars they’ve been practicing that move.”
Estamos em 2022 e, foda-se, viva o Mann-Scott-Baysianism!
Existem dois tipos de cinéfilos. Tem os que preferem o maximalismo disso aqui. E os que preferem o maximalismo daquele filme lá da A24.
Puro Tony Scott pós-The Fan (1996). Um filme que deliciosamente não sabe quando parar — e Bay sempre estende seus trabalhos em trinta minutos a mais do que deveria, mas tudo bem. Um desvairado tributo de som & fúria aos anônimos heróis diários da classe trabalhadora — aliás, falando num mundo de fitas de ação pós-Tony, que sessão dupla linda forma com o O Passageiro (The Commuter, 2018), hein?
Poderia dizer mais umas coisinhas, mas tudo que interessa está neste fiozinho do Marcelo Miranda no Twitter.
Ah, e que belo trabalho de Roberto De Angelis em seu primeiro grande trampo como DP. Dion Beebe, que fotografou o 13 Horas (2016), e drones mudaram a carreira de Bay pra sempre.
Agosto/setembro: Cronenberg, Frammartino, Peele, Marte Um
Vamos almoçar tentar reviver isto aqui mais uma vez?
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Crimes do Futuro (Crimes of the Future, 2022), de David Cronenberg
▶️ Na Mubi
Po, bom demais o Cronenberg pegar o título de um de seus filmes mais fracos — segundo longa ainda, fase pré-Shivers — e tratar este movimento palimpséstico como uma espécie de revisão desconcertante da própria carreira.
Digo desconcertante porque o filme promove um bem-vindo curto-circuito entre o Cronenberg modo austero & contido dos últimos vinte anos — revi Marcas da Violência (2005) e continua obra-prima — e o material desavergonhado que o consagrou, o body horror, o sci-fi pós-humano de eXistenZ (1999) pra trás.
Crimes às vezes patina entre o registro vacilante de espionagem — pra mim simplesmente não colou — e um tantão de inspiradíssimas seções eróticas. Mas, no fim das contas, quem é que vai comentar nossa relação doentia com o próprio corpo e os apêndices tecnológicos de “aprimoramento” que nos rodeiam com tanto vigor? Só ele mesmo.
Ah, e na torcida pra mais uns cinco filmes de Cronenberg com K-Stew nos próximos anos. Ela nasceu pra isso. Unzinho pode rolar — e com R-Patz.
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Il Buco (2021), de Michelangelo Frammartino
▶️ Por aí
Filme do buraco bonito.
Nunca tinha visto nada de Frammartino antes e fiquei bem embasbacado com isto aqui. Um docudrama embrenhado nas profundezas da Terra e nas notas finais de um senhorzinho pastoril.
Quase sem diálogo, nada de narração ou exposição — tipo um filme mudo de Herzog, talvez? –, “só” um bocado de plano com iluminação natural inacreditável de linda. Amo esses filmes que conseguem evidenciar a estranheza solitária do nosso planetinha a partir de esconderijos tão particulares.
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Não! Não Olhe! (Nope, 2022), de Jordan Peele
▶️ Nos cinemas e por aí
Não tem como não gostar de filme errático assim, não. Peele segue apaixonado por personagens definidos — mas não programados — por traumas, e consegue visualizar isso com tintas temperamentais, cômicas, bizarras.
Nope é lindamente all over porque tudo que acontece precisa soar irresistível, implacável — do comentário sobre a subrepresentação ou apagamento mesmo de pessoas pretas no cinema e na história do cinema à brincadeira do Oprah shot, passando pelo imaginário western misturado ao do horror diante do desconhecido.
De lascar o plano da chuva de sangue.
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Marte Um (2022), de Gabriel Martins
▶️ Nos cinemas
A Filmes de Plástico segue boa demais da conta neste negócio de fazer filmes sobre sofrer & sobreviver & sonhar.
Nada mais brasileiro — sobretudo nos últimos quatro anos — do que tentar ficar vivo hoje e torcer pra que as próximas 24 horas sejam um pouquinho melhores do que as que acabaram de passar. E olha que tudo se passa numa época pré-pandêmica e quase pré-intankável Bostil, no comecinho de 2019.
Cena de sexo mais afetuosa dos últimos tempos tá aqui.
Outubro: Olhar de Cinema + Mostra SP
Minha primeira Mostra São Paulo foi há exatos dez anos. Mas tenho saudade mesmo é da Mostra 2020: todos os filmes on-line e a R$ 6. Em 2021 — até à 0h de quinta –, a nossa amada Mostra Play não agasalhou os hits — só alguns, não todos — e cada ingresso, 12 crimes de responsabilidade.
Ah, e finalmente me “organizei” o suficiente pra pelo menos dar uma espiada no Olhar de Cinema. Tudo de graça e deu pra ver o mais faladinho de lá — taí na lista abaixo.
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Crime Culposo (Careless Crime, 2020), de Shahram Mokri
▶️ Olhar de Cinema
A anti-reconstituição cinéfila de uma tragédia nacional — o incêndio no Cinema Rex, em 1978. Mokri adota e embaralha múltiplos pontos de vista que parecem reencenar — quase a contragosto, de uma maneira mística, fantástica até — um trauma definidor de um país e de gerações inteiras.
Obviamente, interessa mais o entorno da coisa do que a coisa em si. Somos jogados até prum filme dentro do filme — o próprio Crime Culposo.
Um míssil que não explodiu, um filme exibido numa nascente, um novo incêndio que jamais acontece — mas, de certa maneira, já aconteceu, sim. Luto é complexo à beça mesmo.
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O Joelho de Ahed (Ha’berech/Ahed’s Knee, 2021), de Nadav Lapid
▶️ Mostra SP
“Manche a nação e morrerá de fome”.
Tá todo mundo meio puto, né? Todo mundo mesmo. Agora, saber filmar esse nervosismo é para poucos. E Lapid condensa essa fúria na forma de um filme mezzo crise de ansiedade, mezzo egotrip.
Impressionante como ele consegue transformar a câmera num ente físico. Só assim para capturar o êxtase doloroso de um personagem tentando desesperadamente escapar de si mesmo, de Israel, de uma sociedade militaresca. Ele trabalha no casting de seu novo filme e topa uma exibição especial de um trabalho anterior numa cidadezinha desértica. Dinheiro “fácil”, ao que parece.
Mas, num país opressor, toda negociação começa e termina segundo as regras da “guerra cultural” que o neofascismo impõe à liberdade artística. Não diga isso nem aquilo. Não provoque o estado. Preencha este formulário aqui. Vamos preferir amenidades culturais e históricas, por favor. Arte comportada e alinhada, caro artista-cidadão.
Lapid segue brincando (e, num sentido obviamente artístico, brigando também) com a forma porque esta parece ser a única maneira de lidar com a virulência estatal. De outra maneira, teríamos uma palestra. Melhor isso aqui: um body horror psíquico.
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A Garota e a Aranha (Das Mädchen und die Spinne/The Girl and the Spider, 2021), de Ramon e Silvan Zürcher
▶️ Mostra SP
Basta uma mera mudança de apartamento — a separação de duas roommates — para tocar em questões filosóficas da existência. Um filme obsessivamente construído na acumulação de cotidianices e nos mistérios subestimados de um dia qualquer — olhares demorados ou rápidos, gestos seguros ou receosos, expressões que se escondem ou se mostram.
Não há quase nada de trama, pelo menos não no sentido de uma exposição convencional de eventos, passagens e diálogos, mas ao mesmo tempo está tudo lá: uma amizade que pode ou não já ter sido um romance, a presença de vizinhos e parentes que incomodam ou atraem, cães, gatos e crianças sempre em movimento, objetos que carregam toneladas de memórias, ressentimentos mal escondidos, sonhos bobos contados para passar o tempo, fugas fantasiosas, paixões que nascem e morrem na intensidade de um olhar, conversas rasas que, de repente, estouram num pensamento há muito represado (“nunca senti que você fosse minha mãe”).
Um filme singular sobre as estranhezas familiares da vida comum.
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Sr. Bachmann e Seus Alunos (Herr Bachmann und seine Klasse/Mr. Bachmann and His Class, 2021), de Maria Speth
▶️ Mostra SP
Um filme de 3h37min sobre um professor, seus métodos educacionais voltados tanto a individualidades criativas quanto a um senso constante de coletividade, e seus alunos adolescentes de origens diversas — a maioria imigrantes da Europa oriental.
Pouco importa o conteúdo das classes. E, sei lá, acho que ele dá aula de alemão, artes e educação física (?). Mas a força do filme é justamente narrar a educação como processo — ainda que, pedagogicamente, fica muito claro como, mesmo lá, a escola desse mundo neoliberal que vivemos parece trabalhar numa frequência resultadista, um projeto de formação de futuros trabalhadores (tem um análise bem boa sobre isso aqui).
Bom, Bachmann faz sua parte para que as notas ou o ponto futuro imediato desses adolescentes — ensino médio ou técnico — sejam menos determinantes do que aprender a respeitar o coleguinha e a olhar o mundo com uma disposição curiosa e carinhosa, sobretudo o novo e o diferente.
Agosto: Shyamalan, Bressane, Still Processing
Saudade disso aqui.
Em cinco meses, fevereiro de 2022, fecho dois anos sem escrever profissionalmente sobre cinema.
Então acho que já passou da hora de voltar a fazer isso ~livremente~, sem querer informar nada nem ninguém, sem dar veredicto (risos) ou certificar (risos²) qualquer coisa de porra nenhuma, sem dizer que isso vale, aquilo não vale. Esse hábito egoistinha, o de escrever por escrever, comecei milhares de anos atrás num blog sobre futebol & aleatoriedades e acabou me levando (goste eu ou não) pro (finado) jornalismo cultural, pra crítica de cinema.
Vou usar esse espaço como mera extensão do que amo fazer há uma década e meia no Criticker — estocar notas mentais e outras bobajadas correlatas sem ter que lidar com interatividade de rede social.
Chega de autocomiseração — quem nunca — e vamos aos três melhores filmes vistos em agosto.
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Capitu e o Capítulo (2021), de Júlio Bressane
Globo Filmes, nunca criticamos!
Bom, o novo Bressane tá por aí e, segundo a Pandora, vai estrear nos cinemas em 3 de fevereiro de 2022. Olha, tomara mesmo.
Não tem como não sair algo maravilhoso de um encontro desses: Bressane engole o clássico de Machado de Assis e transforma Capitu, Casmurro e Bentinho em algo tão inclassificável quanto familiar, com aquela frequência lucidamente febril de delírio e sonho, tesão e fruição, loucura e instinto, carne e fantasmagoria, luz e sombra.
O plano de Vladimir Brichta, o Bentinho, caminhando angustiado na direção da câmera e perguntando “será que o filho dele?” é das coisas mais lindas da década. Pistas de filme-ensaio aqui (Enrique Diaz, o youtuber bressaniano possível), piscadinha pra Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971) ali. Ainda rola um making of delicioso no recheio dos créditos finais.
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Still Processing (2020), de Sophy Romvari
▶️ Na Mubi
Não tenho grandes traumas familiares nem nada do tipo e nem assim sequer cogito a possibilidade de ir lá na casa de mãe e começar a espiar álbuns antigos de família, ressuscitar videocassete (acho que ainda funciona) pra dar play num bando de fitas VHS sem etiqueta ou identificação. Tenho quase certeza de que meu aniversário de um ano tá em algumas delas. Eu, hein.
Mas esse curta é forte justamente por isso. Até porque aqui tem trauma, sim: eram quatro irmãos e dois morreram precocemente há poucos anos. Sophy Romvari, a caçula, se não estou enganado, abre uma caixa de fotos e vídeos inéditos pra ela — material caseiro, mas mui bem pensado e executado pelo pai, que estudou cinema na Hungria, mas jamais trabalhou com isso no Canadá — e parte desse acervo pra organizar o filme-ensaio mais direto e duro possível: memórias de infância quase que inteiramente (re)construídas por imagens.
Tudo que ela pode fazer é tentar processar.
…
Tempo (Old, 2021), de M. Night Shyamalan
▶️ Nos cinemas
Quebrei a quarentena pra ver Shyamalan salvar o cinema mais uma vez. Dia de folga, sala vazia — eu (vacinado com a primeira dose) e uma desconhecida –, sessão de 13h40. Foi tranquilo e inquietante. Mas não sei quando volto a cinema, não.
Em tempos de pandemia, Shya foi lá e meteu uma low fantasy chambier piece praiana pra gente respirar fundo a areia que vamos nos tornar assim que morrermos — de amanhã não passa. Um body horror dolorosamente mundano, fincado em elipses violentíssimas. Piscou, enrugou. Toda conversa é despedida. Planos de dez segundos que duram dez anos. Filme mais arriscado dele desde o subestimado Fim dos Tempos (The Happening, 2008) — que sessão dupla maravilhosa vai dar esse par –, com um quê de aprisionamento corporal à la A Vila (The Village, 2004).
Tempo não cura nada, até porque envelhecer é sempre lembrete do trauma diário mas dormente da certeza da mortalidade.