Arquivo
2012 em: livros
Não sei se li tanto quanto deveria em 2012. Faltou-me tempo, eu acho, ou passei muito tempo em salas de cinema ou na sala de estar, diante de .avis e .mkvs obtidos nos torrents da vida.
Várias das melhores leituras que tive vieram das coberturas de que participei — da Flip, a minha primeira, na qual ouvi a ladainha do Franzen, encontrei em Enrique Vila-Matas um pensador sobre um assunto que muito me interessa (o fracasso) e ganhei um autógrafo do Ian McEwan; e da (1ª) Bienal Brasil do Livro e da Leitura, esforçada, mas no geral insatisfatória.
Ei-la — a lista, sem distinção de nacional ou estrangeiro, ficção ou não ficção:
10 Raymundo Curupyra, o caypora. De Glauco Mattoso. Tordesilhas, 256 páginas.
Redigido em um mês, preservando uma ortografia anterior à do acordo de 1943, o libelo político/romance lyrico do poeta inscreve seus personagens pervertidos e insidiosos num épico da decadência urbana. É a Cracolândia vista pela arte (antiquada mas presente, graças ao auctor) do soneto — de 200 deles, aliás –, da narrativa clássica/heroica em diálogo com as crueldades do mundo contemporâneo, pela arte que escancara esgotos, abre bocas sujas, joga luz em vielas e atravessa uma cidade feita de sofrimento, esperteza e narrativas escondidas por uns e outros — e renarradas por Glauco.
9 A visita cruel do tempo (A visit from the Goon Squad). De Jennifer Egan. Tradução: Fernanda Abreu. Intrinseca, 336 páginas. (Copio aqui trechos do que já disse aqui.)
Ler Jen é como ler um Franzen menos barroco. Ela ambienta seus personagens num período equivalente ao de Franzen. Todos cresceram mais ou menos na mesma época e lugar, a San Francisco do final dos anos 1970 — numa narrativa que pressente um futuro próximo sinistro e plausível, em que até bebês empunham seus gadgets. Jen firma arcos narrativos concisos: a estrutura é multifocal, secionada em linhas do tempo e em vozes de uma porção de gente — em primeira ou terceira pessoa, em slides do Power Point (o melhor do romance), em esqueleto de artigo jornalístico; os estilos são tão variados quanto a variedade de episódios.
8 Pássaros na boca (Pájaros en la boca). De Samantha Schweblin. Tradução: Joce Reiners Terron. Benvirá, 224 páginas.
Estreia da escritora argentina no mercado editorial brasileiro, com uma seleção de 18 contos de terror. A formação de cineasta de Samantha inspira alguns dos parágrafos — ou cenas ou sequências — mais assustadores e imprevisíveis lidos por mim em 2012: o sobrenatural e o absurdo invadem histórias comuns sobre gente comum, como a da garotinha que engole passarinhos e passa seus dias simplesmente esperando pela próxima refeição. Narrativa de cortes secos e guinadas impensáveis, encerradas quase sempre em tom de anticlímax.
7 A batalha pela alma dos Beatles (You never give me your money: the battle for the soul of The Beatles). De Peter Doggett. Tradução: Ivan Justen Santana. Nossa Cultura, 512 páginas.
Estudioso da contracultura e beatlemaníaco — um fã/pesquisador/crítico de música –, o jornalista visita os bastidores das disputas judiciais, das rusgas interpessoais e das crises das vidas públicas e privadas de John, Paul, George e Richard (o Ringo, ora). Leitura compulsiva de um tema compulsivo, o livro é tanto crônica sobre um fenômeno perene quanto análise (via jornalismo) dos destemperos, dos arrependimentos e das atitudes do quarteto que inventou uma geração e, depois, porque feito de simples seres humanos, sofreu para aceitar o próprio legado.
6 Stieg Larsson — A verdadeira história do criador da trilogia Millennium (Stieg). De Jan-Erik Pettersson. Tradução: Maria Luiza Newlands. Companhia das Letras, 296 páginas.
Mais do que simples objeto de desejo dos fãs, o relato de Pettersson, escrito sem vernizes sensacionalistas, divide-se em 1) resgate histórico dos radicalismos e extremismos fascistas na Europa pós-Segunda Guerra e 2) ensaio que reúne e conecta, ao mesmo tempo, histórico pessoal do best-seller/jornalista engajado e seus interesses incansáveis na investigação dos aparatos usados por antissemitas, racistas e demais reacionários. É biografia, mas fala intimamente sobre os paradoxos sociais e ideológicos de todo um continente.
5 Paris, a festa continuou — a vida cultural durante a ocupação nazista, 1940-4 (And the show went on). De Alan Riding. Tradução: Rejane Rubino e Celso Nogueira. Companhia das Letras, 464 páginas.
A alusão ao memorial de Hemingway não é gratuita: combinando reflexão crítica com pesquisa histórica, Riding ilumina as contradições de uma cidade artística e cultural que sobreviveu a Hitler, abrigou resistentes, indiferentes e colaboracionistas, e manteve-se de pé. O autor flagra o conforto de amistosos ao nazismo, a angústia de uma resistência mais simbólica do que pragmática e as posições voláteis da intelligentsia vigente (Camus, Picasso, Sartre e seus pares pensantes da poesia, do cinema, da dança, da música e de outras artes).
4 Realidades adaptadas. De Philip K. Dick. Tradução: Ludimila Hashimoto. Aleph, 304 páginas.
A seleção dos contos de Dick adaptados ao cinema — entre eles, Minority report e O vingador do futuro — serve para revelar as facetas mais ágeis, econômicas e breves do amalucado e lisérgico autor de sci-fi — e também para denunciar a fragilidade das transposições para a telona. Fato curioso é que as duas histórias mais interessantes geraram as duas versões cinematográficas menos prestigiadas (com razão), O pagamento e O vidente. Escrita relaxada, apressada — e, por isso, de intuições geniais.
3 Anatomia de um instante (Anatomía de un instante). De Javier Cercas. Tradução: Ari Roitman e Maria Alzira Brum. Biblioteca Azul/Globo, 432 páginas.
Exame filosófico do golpe de estado de 23 de fevereiro de 1981, tornado irreal e real pelos registros televisivos feitos do episódio. Cercas não escreve nem romance histórico, nem ensaio político: ao dissecar o real por meio da imagem — e das lembranças coletivas e pessoais e imaginadas criadas a partir dela, da imagem –, ele propõe uma espécie de estudo de caso não somente sobre o fato, mas sobre os vetores midiáticos e os discursos anteriores e posteriores ao golpe. Objeto editorial estranho, anômalo e original.
2 Serena (Sweet tooth). De Ian McEwan. Tradução: Caetano W. Galindo. Companhia das Letras, 384 páginas.
Terminada a coletiva de imprensa na Flip, ele recebeu a minha prova antecipada do seu novo livro nas mãos, perguntou meu nome e rabiscou “to Felipe, best wishes, Ian McEwan”. Mas não, não é por isso que considero Serena uma das melhores coisas que devorei em 2012, acredite. É que Sir McEwan, um ficcionista de narrativas sobre o desejo, replica seus experimentos de romance-dentro-do-romance e falso narrador num plot inebriante de espionagem — cuja estrutura encorpa em suas páginas maquinações e mistérios duma espécie de investigação literária, arquitetada e manipulada pelo espião-escritor.
1 O imperador de todos os males — Uma biografia do câncer (The emperor of all maladies). De Siddhartha Mukherjee. Tradução: Berilo Vargas. Companhia das Letras, 648 páginas.
Um livro de oncologia e história da medicina pensado, escrito e refletido com propriedade científica, literária e humana. Um monumento. Sem mais. Com a palavra, o autor do melhor livro do ano:
Kenneth Armor, 62 anos, câncer de estômago. Em seus últimos dias, tudo o que queria era tirar férias com a mulher e ter tempo para brincar com seus gatos.
Oscar Fisher, 38 anos, tinha câncer de pulmão de pequenas células. Deficiente cognitivo desde que nasceu, era o filho predileto da mãe. Quando morreu, ela enfiava rosários entre seus dedos.
Aquela noite fico sentado sozinho com minha lista, lembrando nomes e rostos até tarde. Como é que se presta homenagem fúnebre a um paciente? Esses homens e mulheres foram meus amigos, meus interlocutores, meus mestres — uma família substituta. Levanto-me junto à minha escrivaninha, como se estivesse num funeral, as orelhas quentes de emoção, os olhos rasos de lágrimas. Passo os olhos pelo quarto, pelas escrivaninhas vazias, e me dou conta da rapidez com que os últimos dois anos mudaram todos nós. Eric, arrogante, ambicioso e inteligente, está mais humilde e introspectivo. Edwin, de uma alegria e um otimismo sobrenaturais em seu primeiro mês, fala abertamente de resignação e dor. Rick, químico orgânico de formação, tornou-se tão apaixonado pela medicina clínica que já não sabe se voltará para o laboratório. Lauren, cautelosa e madura, tempera suas astutas avaliações com piadas sobre oncologia. Nosso encontro com o câncer nos arredondou, alisou e poliu como pedras na corrente.
Paris é uma festa
“Quando conseguimos entrar no Michaud, fizemos uma refeição maravilhosa. Mas quando terminamos e já não sentíamos mais fome, a sensação que nos parecera fome, quando estávamos na ponte, ainda continuava dentro de nós, ao tomarmos o ônibus para casa. Continuava quando chegamos ao quarto e, depois de termos ido para a cama e feito amor no escuro, ainda estava lá. Quando acordei com as janelas abertas e o luar nos telhados das casas altas, ainda estava lá. Afastei o rosto para a sombra, mas não podia dormir e fiquei acordado, pensando nisso. Tínhamos ambos acordado duas vezes, nessa noite, e agora minha mulher dormia docemente com o luar no rosto. Tinha de me esforçar para compreender o que se passava conosco, mas sentia-me demasiadamente estúpido. E a vida me tinha parecido tão simples naquela manhã, quando despertei, e encontrei a falsa primavera, ouvi a gaita de foles do homem das cabras e saí para comprar o jornal de corridas.
Mas Paris era uma cidade muito antiga, nós éramos jovens e nada ali era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o luar, nem o bem e o mal, nem a respiração de alguém que deitada ao nosso lado dormisse ao luar.”
Paris é uma festa (A moveable feast, EUA, 1964). De Ernest Hemingway. Tradução: Ênio Silveira. Bertrand Brasil, (15ª edição, 2011), 240 páginas.
Conversas com Scorsese
“Durante anos convivi com uma parte de um cartaz de seis folhas de Vidas amargas. Seis folhas é um cartaz gigante, basicamente. Mas não tinha a maior parte dele, só uma imagem do meio. Mandei emoldurar. Ficou em cima do sofá em Los Angeles durante algum tempo e agora está no cofre. Era só James Dean e Lois Smith num corredor escuro; ele se preparando para seguir pelo corredor até o quarto da mãe. Kazan foi jantar em casa uma noite e ficou tão emocionado com aquilo. Passava todo o medo de descobrir o que havia no fim do corredor, o que havia no quarto. Não havia letras, nada, apenas aquela imagem. O cartaz de uma folha de Vidas amargas não evoca o filme para mim da mesma forma.
Bom, é absurdo — você não pode possuir o filme porque não o fez, e não pode possuir o momento em que o filme foi projetado. É como perseguir um fantasma. O único jeito de possuir um filme é fazer os seus próprios. Mas eles não chegam nem perto dos filmes que te influenciaram ou impressionaram quando você estava em seus anos de formação. Então você tenta captar alguma coisa deles.”
Conversas com Scorsese (Conversations with Scorsese, EUA, 2010). De Richard Schickel. Tradução: José Rubens Siqueira. Cosac Naify (2011), 528 páginas.
O homem ou é tonto ou é mulher
“Se uma mulher me pedir:
— Quero que subas até ao 10º andar pelas escadas e de lá do alto quero que grites que me amas; se uma mulher me pedir isto, é claro que eu não vou subir a lado nenhum, nem gritar nada — que eu não sou de gritos — mas de certeza que lhe vou dar um beijo.
Elas não resistem a isto.
Ser romântico é dar beijos em qualquer situação.
Elas pedem-nos uma outra coisa e nós zau: um beijo.
Elas choram e nós zau: 1 beijo.
Riem à gargalhada e nós, zica: 1 beijo.
É assim: beijos, beijos, beijos.
Sou romântico, mas não sou palerma.
Subir de escadas até ao 10º andar por causa de uma mulher?
Nem pensar.”
O homem ou é tonto ou é mulher, de Gonçalo M. Tavares. Casa da Palavra, 96 páginas.
O imperador de todos os males
“É tarde da noite na sala dos residentes e faz silêncio no hospital à nossa volta, exceto pelo tinir metálico de talheres trazidos para as refeições. O ar exterior é pesado, com ameaça de chuva. Nós sete, agora amigos íntimos, preparamos listas para entregar à próxima classe de residentes quando Lauren começa a ler a sua em voz alta, pronunciando os nomes das pessoas de que cuidava e que morreram durante os dois anos da residência. Na inspiração do momento, ela para e acrescenta uma frase a cada nome, como uma espécie de epitáfio.
Esse serviço fúnebre improvisado mexe conosco. Eu me junto a eles, recitando os nomes de meus pacientes que morreram e acrescentando uma ou duas frases em memória de cada um.
Kenneth Armor, 62 anos, câncer de estômago. Em seus últimos dias, tudo o que queria era tirar férias com a mulher e ter tempo para brincar com seus gatos.
Oscar Fisher, 38 anos, tinha câncer de pulmão de pequenas células. Deficiente cognitivo desde que nasceu, era o filho predileto da mãe. Quando morreu, ela enfiava rosários entre seus dedos.
Aquela noite fico sentado sozinho com minha lista, lembrando nomes e rostos até tarde. Como é que se presta homenagem fúnebre a um paciente? Esses homens e mulheres foram meus amigos, meus interlocutores, meus mestres — uma família substituta. Levanto-me junto à minha escrivaninha, como se estivesse num funeral, as orelhas quentes de emoção, os olhos rasos de lágrimas. Passo os olhos pelo quarto, pelas escrivaninhas vazias, e me dou conta da rapidez com que os últimos dois anos mudaram todos nós. Eric, arrogante, ambicioso e inteligente, está mais humilde e introspectivo. Edwin, de uma alegria e um otimismo sobrenaturais em seu primeiro mês, fala abertamente de resignação e dor. Rick, químico orgânico de formação, tornou-se tão apaixonado pela medicina clínica que já não sabe se voltará para o laboratório. Lauren, cautelosa e madura, tempera suas astutas avaliações com piadas sobre oncologia. Nosso encontro com o câncer nos arredondou, alisou e poliu como pedras na corrente.”
O imperador de todos os males — Uma biografia do câncer, de Siddhartha Mukherjee. Tradução: Berilo Vargas. Companhia das Letras, 648 páginas.
Tudo se ilumina
“A vida de Brod era uma lenta percepção de que o mundo não era para ela, e de que — fosse por que razão fosse — ela jamais seria feliz e sincera ao mesmo tempo. Ela sentia-se transbordar, sempre produzindo e guardando mais amor dentro de si. Mas não havia libertação. Mesa, bibelô de marfim em forma de elefante, arco-íris, cebola, penteado, molusco, Shabbos, violência, cutícula, melodrama, vala, mel, paninho ornamental… Nada daquilo a comovia. Ela abordava o mundo com sinceridade, buscando algo merecedor do enorme amor que sabia ter dentro de si, mas para cada coisa teria de dizer, Eu não te amo. Mourão de cerca cor de casca de árvore: eu não te amo. Poema longo demais: eu não te amo. Almoço na tigela: eu não te amo. Física, tua ideia, tuas leis: eu não te amo. Nada dava a sensação de ser mais do que na realidade era. Tudo era apenas coisa, completamente atolada em sua coisice.
Se abríssemos ao acaso uma página no diário dela (que ela devia manter, e mantinha consigo o tempo todo, não por temer que fosse perdido, ou descoberto e lido, mas sim por registro e lembrança, e não ter onde registrá-lo), encontraríamos algumas descrições do seguinte sentimento: Eu não estou apaixonada.
E assim ela tinha de se satisfazer com a ideia do amor — amando o amor de coisas com cuja existência ela pouco se importava. O próprio amor se tornou objeto do amor dela. Ela se amava no amor, amava amar o amor, tal como o amor ama amar, e assim conseguia se reconciliar com um mundo que estava muito aquém do que ela poderia esperar. Não era o mundo que era a grande mentira salvadora, mas a vontade dela de torná-lo belo, de viver uma vida em segundo grau, num mundo aparentado em segundo grau com aquele no qual todos os outros pareciam existir.”
Tudo se ilumina, de Jonathan Safran Foer. Tradução: Paulo Reis e Sergio Moraes Rego. Rocco, 368 páginas.